sexta-feira, 24 de abril de 2009


Indivíduo e sociedade

Cesar Vallejo

Quando foi dado início ao interrogatório, o assassino deu sua primeira resposta, lançando um demorado olhar sobre os membros do Tribunal. Um deles, o juiz substituto Milad, parecia de maneira impressionante com o acusado. A mesma idade, o mesmo olho direito mutilado, o corte e cor do bigode, a linha e espessura do busto, a forma da cabeça, o penteado. Um duplo absolutamente idêntico. O assassino viu seu duplo e algo deve ter acontecido em sua consciência. Girou estranhamente seu olho esquerdo e morto, puxou seu lenço e enxugou o suor da dura face. A primeira pergunta de fundo, formulada pelo presidente do Tribunal, foi:
-Você gostava de mulheres e, além de Malou, teve sua empregada doméstica, sua cunhada e duas queridas mais...
O acusado compreendeu o alcance processual daquela pergunta. Confuso, cravou seu único olho são no juiz substituto Milad, seu duplo, e disse:
- Gostava das mulheres, como todos os homens...
O assassíno parecia sentir um nó na garganta. A presença de seu duplo começava a causar nele um visível embora misterioso mal-estar, talvez um grande medo... Sempre que era formulada uma pergunta grave e terrível, olhava seu duplo com seu único olho e respondia cada vez mais vencido. A presença de Milad provocava nele um dano crescente, influenciando de um modo funesto o funcionamento de seu espírito e do julgamento. Ao final da primeira audiência, sacou do lenço e se pôs a chorar.
Na tarde da segunda audiência mostrou-se ainda mais abatido. Ontem, dia da sentença, o assassino era, antes da condenação, um farrapo humano, um destruído, um culpado irremediavelmente perdido. Quase já não falava. À leitura do veredicto de morte, ficou afundado no seu banco, a cabeça submersa entre as mãos, insensível, frio, como uma pedra. Quando em meio ao alvoroço e murmúrios da multidão consternada os guardas o agarraram, olhava fixamente apenas a cara de Milad, seu duplo, o juiz substituto.
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Sem mostrar o menor sinal de temor e sem ao menos se disfarçar, o assassino continuou a viver normalmente, aos olhos de todos. Longe de se esconder, como teria feito qualquer matador vulgar, andava por toda parte. A polícia não pode encontrá-lo, justamente porque não se escondia. Pascal tinha razão, quando disse: “Tu não me buscarias se não me tivesses encontrado”.
A tal ponto o indivíduo é livre e independente da sociedade.
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Após o famigerado debate no Supremo Tribunal Federal, cujo presidente dispensa comentários, resolvi traduzir este conto de Cesar Vallejo, que faz parte do livro Contra el secreto profissional. Tanto os contos desse livro como a novela Tungstenio constam da edição Cesar Vallejo – novelas y cuentos completos, organizada por Ricardo González Vigil (Lima: Ediciones Cope Peru, 1998), presente de meu amigo, o poeta Hildebrando Pérez.
Ilustra o conto o símbolo do Tungstênio.
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