terça-feira, 4 de agosto de 2009


A dialética da compaixão

Everardo Norões

Todas as janelas da literatura de Ronaldo Brito – seja ela conto ou teatro – abrem-se para uma cidade imaginária. No entanto, essa cidade existe. E o que a torna real são seus personagens, seres que habitam ruas, praças e, sobretudo, nossos silêncios. Por onde passei ou vivi, encontrei personagens como Maria Caboré ou Sebastião Candeia, mas que se chamavam, por vicissitudes da geografia ou da cultura, Mustafá ou Mohamed, Ibraimo ou Abdelkader.Para a literatura, as tragédias humanas necessitam de um cenário; mas pouco importa se esse cenário é Crato, Recife, ou um lugarejo mítico situado em algum cosmos particular, como a Santa Maria de Onetti.No fundo, ele é sempre o disfarce de um lugar que não existe. E é esse o grande milagre da literatura.
O Crato de Ronaldo é um lugar universal e ao mesmo tempo extremamente seu, porque apenas ele o observa assim: como a Orã de Camus, a Cairo de Taha Hussein, a Maputo de Mia Couto, ou a Recife de Joaquim Cardozo.
Numa visita da banda cabaçal Irmãos Aniceto, ao país do Sul, um de seus integrantes foi levado a um alto edifício. E, então, alguém lhe perguntou o que avistava dali. – O Crato!, respondeu. Ronaldo Brito é feito do mesmo fogo e do mesmo barro desses Irmãos Aniceto.
Os personagens de Ronaldo são protagonistas de um sertão destruído, território da desolação, onde os valores arcaicos foram triturados por uma espécie de máquina infernal, mas que sobrevivem pela alquimia da imaginação,única matriz da literatura. Maria Caboré, que entrava “na simplicidade das pedras do rio, onde sentava para enxugar-se do banho”, é sua Santa Maria Egipcíaca; Sebastião Candeia, personagem de um dos contos do livro, é uma metáfora do sofrimento metafísico do autor: o combate contra si mesmo e contra esse seu mundo desmantelado e perdido. É também a contrapartida do absurdo jogo da criação, no qual ele se percebe o eterno e inevitável perdedor: por mais que pense ter criado um novo invento acaba por se dar conta de que apenas repete os pequenos dramas do homem de qualquer lugar.
A literatura de Ronaldo Brito, no seu Livro dos homens, opõe-se a uma outra literatura que sugere um sertão de brasões, de fidalgos e de reis, simples liturgia de veneração às sombras. As sombras do que somos. É uma literatura do real transfigurado, e não a figuração do irreal.
O fio da meada dos contos do Livro dos Homens nos conduz à linhagem clássica de Guy de Maupassant: narrativas com inícios e fins, pontuadas pelas contingências do humano, marcadas pelo sentido da exatidão, o rigor do estilo.
Mas, o que mais surpreende e cativa nestes contos de Ronaldo (entre os quais destacaria Qohélet) é aquela mesma paixão pelo próximo que transborda dos livros de um outro escritor, médico, como ele: Miguel Torga, o grande mestre do conto português.
Em cada uma das histórias deste livro encontramos uma pequena epopéia da loucura e da desgraça do Livro dos homens, que são, afinal, os eternos alimentos do entretenimento e da compaixão do Leitor.
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P.S. Ronaldo acaba de receber o prêmio de melhor livro do ano do governo de São Paulo, com o livro Galiléia. Estamos todos de parabéns...

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