segunda-feira, 31 de maio de 2010


Fernando Pessoa e O Homem de Porlock

O curioso texto de Fernando Pessoa, O Homem de Porlock, trata da composição do poema Kubla Kahn, da autoria do poeta inglês Coleridge. O episódio foi tratado por Borges no ensaio El sueño de Coleridge, em 1952. O artigo de Fernando Pessoa, publicado no nº 2 da revista Fradique, Lisboa, foi publicado em 15 de fevereiro de 1934; portanto, mais de vinte anos antes do texto do escritor argentino.
Segundo Fernando Pessoa, depois de ingerir um ‘anódino’ – de acordo com outras versões tratava-se de ópio – Coleridge adormeceu. Sobreveio um sonho extraordinário, acompanhado de ‘expressões verbais’, que ele, após o despertar, passou a transcrever. Mas foi interrompido por um visitante desconhecido, apelidado de o ‘Homem de Porlock’, nome da cidade vizinha da aldeia onde residia o poeta. Assim, o texto ficou reduzido a fragmentos, incompleto.
Talvez por isso Fernando Pessoa o denominou ‘quase-poema’, na frase aparentemente contraditória de seu artigo: “Esse quase-poema é dos poemas mais extraordinários da literatura inglesa”. A afirmação conduz a uma outra opinião, igualmente interessante, do poeta: a de que a literatura inglesa era a mais importante entre todas, à exceção da grega. Numa época em que a literatura ocidental, sobretudo a portuguesa, recebia da França sua influência maior, Fernando Pessoa se situava, como sempre, a contracorrente. Educado em Durban, na África do Sul, o inglês, de fato, lhe era tão familiar quanto o português. Além disso, foi o principal idioma de trabalho na sua atividade de “correspondente estrangeiro em casas comerciais”, conforme definiu sua profissão em nota biográfica com data de 1935.
Para Fernando Pessoa, o Kubla Khan, de Coleridge, “era o princípio e o fim de qualquer coisa espantosa, de outro mundo, figurada em termos de mistério que a imaginação não pode humanamente representar-se, e da qual ignoramos, com horror, qual poderia ter sido o enredo”. Fernando Pessoa considera que Poe – um dos seus poetas prediletos – nunca “atingiu o Outro Mundo dessa maneira nativa ou com essa sinistra plenitude”. No entanto, ao contrário do autor de O corvo – do qual foi tradutor - Coleridge não faz parte da relação de poetas que exerceram sobre o autor de Mensagem alguma influência literária.
Certamente por isso, o artigo ‘O Homem de Porlock’ consta de seus trabalhos sobre a realidade transcendente (no caso, sobre a comunicação onírica) e não entre aqueles voltados para a crítica literária.

P.S. A propósito, tomo a liberdade de transcrever a observação que recebi do amigo, professor e poeta Fred Silva, via e-mail, a respeito do artigo de Fernando Pessoa em questão:
Prezado Everardo,
acho que é o Homem de Porlock, ao contrário do que foi transcrito, que é a grande força criadora. A interrupção do devaneio é o início do trabalho. É quando ele finda que começa a surgir o poeta. Caso não fosse assim, o que distanciaria o significante nulo e o absurdo, cuja equidistância é a base da metáfora?

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