quinta-feira, 8 de julho de 2010

José e João

Traduzi recentemente o conto El barranco, de José María Arguedas, que integra seu primeiro livro, Agua, de 1935. Será publicado na revista Para Mamíferos, com apresentação do poeta peruano e amigo do escritor, Hildebrando Perez Grande. Como neste conto, toda a extraordinária obra de Arguedas tem a marca de sua convivência com a cultura indígena de seu país, o Peru. Angel Rama, no ensaio Meio século de narrativa latino-americana, observa que o romancista de Os rios profundos tentou construir “uma imagem interior e não exterior do índio, substituir o autômato da exploração e das alegações por uma criatura viva e próxima que pode ser reconhecida pelo leitor como um igual”. Por isso não é fácil traduzir Arguedas, como não o foi trasladar para outras línguas a obra de Guimarães Rosa (como bem atesta a correspondência entre o escritor de Grande sertão e seu tradutor alemão, Curt Mayer-Clason). Aqui, prefiro a palavra ‘língua’: vai além de ‘idioma’: língua diz o quanto textos doem à boca, como se estivéssemos a sentir o gosto das terras das Punas de um certo José, ou dos Gerais, de um certo João.
É comovente a leitura do diário de José María Arguedas, cuja primeira parte abre seu último e póstumo livro, Zorro de arriba, zorro de abajo, escrito antes de seu suicídio, cometido em novembro de 1969. Nas páginas do diário, inscritas no livro, Arguedas comenta suas conversas com João Guimarães Rosa, seu grande amigo, “esse Embaixador tão majestoso”, que num momento de depressão e intimidade, revelou ao peruano que os dois haviam ‘descido’ ao âmago de seu povo e não o haviam ‘descido’. De fato, entre os escritores latino-americanos foram dos raros que compreenderam e interpretaram a vida e a linguagem dos ‘de baixo’. E é certamente o mergulho nesse encontro de águas que fez Antonio Cornejo Polar observar que, no Zorro de arriba, zorro de abajo, “os componentes andinos são de tal magnitude e exercem tão decisivas funções, que é legítimo pensar que nessa novela, pela primeira vez, a racionalidade indígena é que dá a razão da modernidade”. Essa afirmação bem poderia ser repetida no que se refere à ‘racionalidade sertaneja’ de Guimarães Rosa.
Destaca-se no Diário inusitado de Arguedas, a página escrita no dia 17 de maio de 1968. Dirige-se a João (Guimarães Rosa), já morto, para contar o episódio de seu encontro sexual com uma pobre e prenha camponesa da aldeia de Ukuhuay e pergunta : “Por qué me dirijo a ti?”. E, após fazer considerações sobre as dificuldades para falar “com uma mínima limpeza”, confessa: “Assim somos os escritores de províncias, este que por terem sido comido pelos piolhos, chegamos a entender Shakespeare, Rimbaud, Poe, Quevedo, mas não o Ulisses”. Provincianos, que somos todos, segundo ele, de nações e do mundo, “que é também uma esfera, um estrato bem fechado, o do ‘valor em si’”.

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