domingo, 13 de fevereiro de 2011

Eco de Anfion

Encontrei no livro de Umberto EcoQuase a mesma coisa (em que ele fala quase sempre dele mesmo) o conceito de écfrase. Écfrase é a descrição minuciosa, segundo o Houaiss. Poderia ser chamada de denotativa ou objetiva. Umberto Eco cita como exemplo as descrições de Filostrato, nascido no ségulo II d.C. Na Fábula de Anfion, poema de João Cabral de Melo Neto, Anfion toca uma flauta. Então, procurei  um texto de Filostrato, que traduzi do francês. Nele, Anfion toca uma lira. Nos dois casos, ele mobiliza as pedras com a linguagem da música para erguer as muralhas de Tebas.


Consta que Hermes foi o primeiro a construir uma lira com dois chifres, uma peça transversal e uma carapaça de tartaruga, e que presenteou esse instrumento primeiramente ao deus Apolo, às Musas e, enfim, a Anfion, o Tebano. Ora, Anfion, que vivia em Tebas, quando essa cidade não tinha ainda muralhas, falou às pedras a linguagem da melodia e ei-las que, dóceis aos seus acordes, acorreram aos montes. Tal é, de fato, o tema de nosso quadro.
Considerem, em primeiro lugar, a lira, para verificar se a representação é exata. O chifre, o chifre do bode selvagem, segundo a expressão do poeta, serve, ao mesmo tempo, para a lira do músico e para a arma do arqueiro: negros, pontudos, capazes de lançar um golpe terrível, são estes os chifres que formam os montantes; para as partes que devem ser em madeira, foi escolhido um buxo liso, de pigmento compacto. O marfim não aparece em nenhum lugar, pois os homens ainda não conheciam nem o elefante, nem o uso que um dia iria ser feito de suas presas. A carapaça é negra; ela é pintada de acordo com o seu natural, sobre toda sua superfície círculos irregulares inscrevem escamas de tonalidade loira. Segura pelo cavalete, a parte inferior das cordas se destaca em relevo e vem ao encontro das escamas; abaixo do cavalete, dir-se-ia (não encontro nada melhor para descrevê-los) que elas estão deitadas bem esticadas sobre a lira. E Anfion, o que faz ele? Toca as cordas da lira; dá uma total atenção ao que faz; deixa entrever seus dentes, tanto quanto o necessário a um cantor; e ele canta, imagino, essa mãe fecunda de todas as coisas que pare até mesmo as muralhas espontâneas.
Uma cabeleira, por si mesma bela, erra graciosamente em torno de sua fronte, desce com os pelos do rosto ao longo da orelha, e se colore de reflexos dourados; ela dá um novo encanto à mitra, esse ornamento delicado que ressalta tão bem num tocador de lira e que alguns poetas, autores de hinos sagrados, chamavam de obra das graças. Creio de minha parte, que Hermes, tomado de amor por Amfion, presenteou-lhe, ao mesmo tempo, com a mitra e a lira. A clâmide é também um dom de Hermes; pois é de uma cor variável, cambiante, e sugere todas as cores da íris.
Sentado sobre um outeiro, Anfion bate o compasso com o pé; com a mão direita, armada com o plectro, ele bate nas cordas; ele as toca com a mão esquerda, cujos dedos estendidos se sobressaem, efeito que somente a plástica me parece capaz de produzir. Mas deixemos isso de lado. E o que fazem as pedras? Elas acorrem aos montes e se arregimentam para erguer as muralhas.

(Philostrate l’Ancien. Une galerie antique de soixante-quatre tableaux – Trad. A. Bougot. Paris. Librairie Renouard, H, Loones, Successeur. 1881).
In http://remacle.org/bloodwolf/roman/philiostrate/table.htm

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