terça-feira, 28 de maio de 2013


 
A cidade do silêncio

 A cidade dos livros não pode ser incompatível com a cidade de concreto, da mesma forma que o andar do passeante não pode se contrapor ao do trabalhador com pressa e horário. A cidade não é apenas lugar. É nela que ideias se formam e os homens se transformam. A cidade, o nome diz, é território do cidadão. Não apenas o que aperta o botão do voto, mas o que protesta ao pressentir que alguma coisa perturba a ordem das ruas e das coisas. Ruas que não deveriam ser depósitos de dejetos, mas percursos agradáveis que, em troca do esforço do homem, pudessem oferecer-lhe prazer estético e a alegria de quem passa por elas.

Mesmo quando se vive numa cidade loteada por empreiteiras, o que se ergue edificado sobre escombros poderia nos dar um mínimo de gozo. Do contrário, a cidade beira o descalabro. Descalabro é não poder caminhar com conforto e segurança nas calçadas, é ter que suportar o trajeto entre casa e trabalho como um exercício de Sísifo, é o temor de ser agredido a cada esquina, é ser obrigado a observar a patética arquitetura de nosso cotidiano. Descalabro é quando nos sentimos desconfortáveis e ludibriados, por exemplo, ao passar por perto desses novos parques e academias da cidade, engendrados a partir da premissa de que há duas cidades distintas: uma feita para os  ricos, outra para os pobres.

Mas parece ser mesmo essa a lógica de nossa cidade. A que motiva a destruição dos equipamentos coletivos, promove a imensa sujeira e o descaso. O argumento generalizado da “falta de educação” do povo não consegue explicar a razão de, num lugar assim, ninguém se sentir dono de nada. Nem mesmo quando certas acrobacias políticas, feito fogos de Bengala, procuram induzir à participação em torno de iniciativas subalternas. O engodo dos orçamentos participativos já pariu seus mostrengos.

Basta observar festas, inaugurações, festivais, onde estão presentes populares, políticos, intelectuais. No após de tudo, o chão estará sempre repleto de lixo, como se a limpeza da cidadania dissesse respeito apenas aos homens de vermelho da firma terceirizada pelo poder público. No outro lado do espelho, em algumas repartições públicas, a mesma a sensação de desleixo, embora  tudo pareça 'normal', enquanto a  televisão nas salas de  espera transmite novelas da Globo em vez de programas educativos.

Então, as perguntas: Qual será o futuro desse lugar em que vivemos, trabalhamos, morremos? Qual de seus recantos ainda é capaz de nos dar algum prazer, relaxamento, conforto?   Por que no nosso dia a dia a mínima tarefa parece se metamorfosear num trabalho de Hércules? Por que ao desembarcar no aeroporto e nos dirigirmos à cidade somos tomados por uma súbita sensação de que estamos penetrando numa zona devastada?  Enfim, que futuro nos espera num lugar onde o "ruído ao redor" parece não incomodar quem vive em bunkers, acompanhado de seguranças, trafegando em carros blindados, matriculando filhos em escolas privadas, enquanto o resto continua sofrendo o desmantelo acumulado de cinco séculos?

Enquanto isso, permanecemos calados, como se nossa cidade fosse uma espécie de fortaleza do silêncio, onde até a crítica literária incomoda. Silêncio até mesmo daqueles que um dia recusaram aceitá-lo como imposição à cidadania.

Mas o silêncio é véspera do grito. E se não acontecer o grito e a mudança que ele pode engendrar, a cidadania continuará tão deplorável quanto uma paisagem vista da Avenida Recife.

 (Ilustração: Oswaldo Guayasamin)

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